Texto curatorial com Caixa I, 2013. |
Não-lugares
(…) ao centro, uma pequena
elevação de terreno. Declives moderados à esquerda, à direita e à frente. Do
lado de trás, declive abrupto. O máximo de simplicidade e simetria.
Luz crua.
O pano
de fundo (…) representa a fuga e o encontro, ao longe, de um céu sem nuvens com
uma planície nua.
Samuel Becket, Dias
felizes
O
artista Fabiano Devide, em seus
trabalhos apresentados na exposição Não-lugares,
envolve o espectador em universos que, à semelhança dos espaços de Becket,
falam do desamparo do homem na atualidade, em um mundo hostil onde é impossível
qualquer tentativa de comunicação e de transcendência. Ao se identificar com os
personagens (presentes ou sugeridos) dos trabalhos do artista, os espectadores, como os protagonistas de Dias felizes, estão condenados a vagar eternamente, sem passado e
sem futuro, em cenários do provisório, do anonimato, do não-pertencimento. São
os não-lugares, conceito proposto pelo antropólogo francês Marc Augé: espaços
de passagem, territórios do efêmero, da impessoalidade e da solidão, marcas do
mundo contemporâneo.
Caixa I, 2013
Da série Locus
Objeto
18 x 18 x 6 cm
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The Observer, 2015
Acrílica sobre brim
100 x 50 cm
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Na
tela de 2015 The observer, a
identificação do espectador com o personagem é imediata. Cinza, preto e azul.
Percebemos o azul como céu; um edifício cinza, curvo, visto em perspectiva
ascendente; e o teto desse edifício, visto a partir de “aberturas”, campos
negros nos muros cinzentos; neste teto há uma abertura, através da qual se vê
uma nesga do céu sem nuvens. O personagem é apenas uma silhueta em preto “à
frente” do cinza, imaginamos que olha para cima, para o pedaço de céu
entrevisto através da fenda no teto da edificação; mas talvez esta silhueta
seja apenas uma sombra ou um buraco na parede. O olhar do espectador penetra
por esta figura negra e se coloca de imediato “dentro” do espaço da pintura, é
ele é quem procura o céu e ao mesmo tempo sente a pequenez de quem só consegue
perceber a realidade mediado por sua representação. Fabiano constrói este jogo
de paradoxos que prende o espectador e o faz pensar.
Sem título, 2014
Da série Blocos
Acrílica sobre tela
50 x 50 cm |
Nos
trabalhos da série Locus o artista
captura o olhar do espectador com as perspectivas vertiginosas e elementos
muito simples, a mesma paleta contida e o tratamento chapado que torna quase
indistinguível o que é tinta e o que é suporte (nas pinturas sobre brim), ou o
que é pintura e o que é colagem. Já nos trabalhos da série Blocos, os personagens são esboçados, contornos apenas sugeridos
com parcos traços; e o campos azuis, que nas outras pinturas eram frestas, se
transformam em blocos nos quais as figuras se apoiam ou com os quais interagem.
Mas em todos os trabalhos aqui mostrados, o espectador, prisioneiro do espaço
pictórico, torna-se o habitante anônimo do não-lugar.
No
Rio de Janeiro de hoje, onde a gentrificação se expande criando uma cidade de
fantasia para visitantes provisórios, Santa Teresa é certamente um “lugar”, um
bairro que resiste e mantém suas características históricas. Em uma casa de
época, bem típica da região, reformada com amor e respeito aos materiais
tradicionais, a contundência dos trabalhos de Fabiano é ampliada.
[sent. horário] Locus V, IV, II, III, 2013-2015
Colagem, múltiplo de 5 + P.A.
24 x 24 cm [cada]
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O
espectador não pode deixar de notar o contraste entre os planos escuros
chapados dos ambientes das pinturas e colagens do artista e as paredes em
tijolos maciços e o piso em parquet
em madeiras nobres do ambiente expositivo. E o artista tira proveito desse
contraste, ao incluir na mostra uma intervenção site-specific em uma das altas portas da casa, criando nela um
campo de cor, referência direta a seus trabalhos e que, rompido, abre para um
jardim lateral com um caramanchão.
Em
seus trabalhos o artista Fabiano Devide constrói metáforas com personagens
vazios presos em espaços anódinos, nos envolvendo e aprisionando. Os cinzas e
negros dos não-lugares, porém, apresentam fissuras através das quais a cor e a
poesia apontam para possíveis rotas de fuga, rumo a lugares de plenitude, como
o pássaro de Amanhecer para Quintana,
voando livre rumo aos primeiros raios de luz da aurora.
Jozias
Benedicto*, curador
Outubro
de 2016
*Jozias Benedicto, nascido em São Luís (Maranhão), é artista visual, escritor premiado e um dos editores da coleção "Pensamento em arte", da editora Apicuri, no Rio de Janeiro.
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