10 de setembro de 2018

Práticas corporais na QUEERMUSEU - EAV- Parque Lage

FERNANDO BARIL
Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva
Acrílica s/ tela, 150x125cm, 1996
(coleção do artista)
Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, é uma exposição coletiva com curadoria de Gaudêncio Fidelis, atualmente montada nas recuperadas cavalariças da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro.


Após ataques de setores conservadores e o fechamento da mesma exposição em sua montagem inicial, no Santander Cultural, em Porto Alegre, no ano de 2017; e a censura imposta pela Prefeitura do Rio de Janeiro para que fosse montada no Museu de Arte do Rio (MAR), a mais bem sucedida campanha de crownfunding do país, com apoio de diversos setores da sociedade, arrecadou mais de um milhão de reais para viabilizar a recuperação de parte das instalações da EAV, o seguro e o transporte das obras, além de uma extensa programação que ocorrerá durante o período da montagem da coletiva.


A exposição reúne obras de artistas de diferentes épocas - Moderna e Contemporânea - unindo-as sob uma temática comum: a problematização de questões relacionadas às manifestações queer.


O texto da curadoria esclarece que "a Queermuseu é um 'museu metafórico', cujo objetivo é propiciar um campo de investigação sobre o caráter patriarcal e heteronormativo do museu como instituição por meio do próprio processo de realização de seu projeto curatorial. [...] constituir uma plataforma de experiência para exercitar o pensamento a partir de uma estrutura antinormativa. [...] Esta é a primeira exposição autointitulada queer com tal envergadura e perfil realizada na América Latina e a primeira já realizada no Brasil" (Gaudêncio Fidelis, curador).


Adentrar na EAV-Parque Lage é uma experiência que necessita ser vivida e não contada por tudo que temos ali, reunido: natureza, arte, educação, turismo, história, arquitetura etc. Assim, passar pelo portão da instituição de arte no Brasil e encontrar uma fila de espera para poder ingressar numa exposição é algo raro (mas prazeroso), afinal, quando temos a oportunidade de viajar e visitar grandes instituições de arte europeias ou norte-americanas, por exemplo, a prerrogativa da fila de espera é algo recorrente, previsto.

Isto demonstra como ainda estamos distantes de uma educação para a fruição da Arte como assistimos em outros países, onde, não raramente, encontramos um público diverso, desde turmas de crianças tendo aulas de Artes nos museus; até pessoas idosas escolhendo, entre outras atividades possíveis no tempo livre, passar um dia andando por galerias sem fim, tal qual testemunhamos em museus como Louvre, Hermitage, Metropolitam, Rijiksmuseum, entre outros.


ALAIR GOMES
Beach Tryptich nº 10, 1980
Fotografia 23x17cm cada (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional)
Beach Tryptich nº 25, 1980
Fotografia 24x18cm cada (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional)
Se pensarmos que esta é uma exposição coletiva com uma temática específica, queer, que tem sido vigiada por distintos dispositivos (movimentos conservadores, mídia, governos, instituições, entre outros); a visita de quase quarenta mil pessoas durante o período de sua montagem significa muitas coisas. Uma delas, inegável, é o interesse do público sobre Arte e a temática Queer; e outra, a constatação de que as questões de gênero estão presentes em nosso cotidiano e afetam as vidas das pessoas, que buscam espaços para se informar e criar laços identitários, que fortalecem grupos sociais e questões silenciadas pelos dispositivos acima mencionados. 


FERNANDO BARIL
Halterofilista, 1989
Acrílica s/ tela, 190x110cm
(Coleção do artista)


Apesar do distanciamento de minha formação daquela da curadoria ou crítica de Arte, como um estudioso da temática dos Estudos de Gênero que possui alguma inserção no território das Artes Visuais, avalio ser necessária uma reflexão sobre a reunião das obras expostas, como um todo, sob a temática queer, uma vez que algumas - mas não a maioria - se relacionam com a mesma.

Importante resgatar o significado do termo queer, que reapropriado pela Teoria Queer, foi ressignificado, passando de algo pejorativo ou depreciativo, a algo que se refere a uma postura afirmativa, relacionada ao movimento social da comunidade LGBTQI+.

Sob uma perspectiva pós-estruturalista e pós-identitária, os Estudos Queer combatem os binarismos (homem/mulher, masculino/feminino, homo/hétero), as polarizações, as dicotomias, a fixidez identitária, a normatividade, entre outros aspectos. Esses estudos buscam, sobretudo, integrar todxs aquelxs que não se enquadram num modelo heteronormativo, binário, que fixa identidades como masculinas ou femininas, a partir de uma determinação biológica, pautada no sexo.

Assim, ao passarmos pelas salas da Queermuseu, é fácil identificar obras de arte que tratam da temática, enquanto outras a tangenciam ou até mesmo, estão afastadas da mesma. Neste post, por minha relação com pesquisas na área dos Estudos de Gênero nas práticas corporais, destaco algumas obras que considerei potentes no âmbito do conjunto exposto e da temática proposta.

Alair Gomes (acima), o artista que produziu milhares de fotografias de homens anônimos exercitando-se na praia de Ipanema, nos brinda com parte do acervo de sua obra, reservado na Fundação Biblioteca Nacional, especificamente os Beach Tryptichs, produzidos na década de 1980, em que constatamos sequências de fotos com homens se exercitando e cultuando o corpo nas praias da orla carioca, sobretudo, em Ipanema.

Neste recorte, também destaco duas obras de Fernando Baril. A primeira apresenta uma pintura híbrida de Jesus Cristo, que dialoga com a Deusa Shiva, com seus múltiplos braços (acima), onde podemos identificar os tênis esportivos e uma luva de boxe em um dos braços (elementos que ancoram sentidos referentes às práticas corporais). A mesma obra ainda nos permite identificar uma série de diálogos com expoentes da Arte Moderna, como Picasso; e da Arte Contemporânea, como Andy Warhol, a partir de elementos diversos a serem cuidadosamente dispostos no campo da pintura.

Em outra obra, o Halterofilista (acima), o mesmo artista apresenta um homem que apesar de apresentar vários elementos que fazem parte de uma masculinidade hegemônica, como por exemplo, a massa muscular; rompe com a mesma ao ser representado utilizando sapatos de salto e um adorno na cabeça, marcas de gênero femininas em nossa sociedade patriarcal e heteronomativa.


GILBERTO PERIN
Fim de Jogo (Série Camisas Brasileiras), 2010
Fotografia 60x90 cm (Acervo MARGS)
Gilberto Perin apresenta uma fotografia que "espia" o espaço homossocial e de reserva masculina do vestiário, pós-jogo de futebol, com uma cena de jogadores alongando-se, trocando de roupa ou descansando sentados. No contexto de uma cultura corporal onde o futebol ainda pode ser identificado como um espaço dominado pelos homens, apresentá-los nus, juntos, no contexto do vestiário, propicia a produção múltiplos sentidos.

NINO CAIS
S/ título, 2016
Colagem s/ papel, 39x31cm
(Coleção particular)
Nino Cais possui algumas obras expostas, entre as quais destaco uma colagem que retrata dois homens em uma cena de luta produzida em 2016. A generificação das lutas como um espaço masculino nas práticas corporais, faz com que mulheres ainda enfrentem barreiras para sua inserção e permanência neste campo. A nudez e posição dos lutadores na imagem dialoga, indubitavelmente, com as fotografias de Eadweard Muybridge, feitas no século XIX.


BIA LEITE
Travesti da Lambada e Deusa das Águas, 2013
Acrílica, óleo e spray s/ tela, 100x100cm
(Coleção Particular)
Por fim, Bia Leite, artista brasiliense, tem duas pinturas, dentre as quais destaco aquela que representa aparentemente uma menina e um menino trans, vestidos, respectivamente de saia e legging, rompendo fronteiras de gênero e binarismos que fixam uma identidade a partir do sexo biológico com o qual nascemos.

Em tempos de censura velada e vetos relativos ao uso dos termos "gênero", "sexualidade", "diversidade", "idendidade", entre outros, no contexto de documentos oficiais que regem a Educação brasileira e outras esferas públicas (federais, estaduais e municipais), visitar a Queermuseu é uma oportunidade ímpar para se deparar com algo que atravessa nossas práticas sociais cotidianas: o gênero e sua implicações em nossas vidas.


Serviço: QUEERMUSEU: CARTOGRFIAS DA DIFERENÇA NA ARTE BRASILEIRA
Curadoria: Gaudêncio Fidelis
Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rua Jardim Botânico, 414, Rio de Janeiro
Período: 18 agosto-16 setembro
Horário: Seg.-Sex. 12:00h-20:00h - Sáb., Dom., Feriados, das 10:00h às 17:00h
Entrada gratuita.